Em entrevista ao portal do Sindigás, a diretora de Estudos para Petróleo, Gás e Biocombustíveis da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Heloísa Borges, falou sobre a urgência e os desafios de elaborar boas políticas públicas para combater a pobreza energética; como programas que promovem o acesso a fontes de energia limpa podem auxiliar na transição energética, na redução da pegada de carbono e, ainda, colaborar para o desenvolvimento sustentável; bem como o papel do GLP nesse processo.

 “A pobreza energética é uma realidade no Brasil”

Como as estimativas do Banco Mundial sobre o impacto da lenha na cocção podem ajudar na elaboração de políticas públicas com foco na realidade brasileira?

Acho importante a gente pensar que o nosso desafio é justamente esse: elaborar políticas públicas que busquem a redução da pobreza energética especialmente com ênfase nos combustíveis limpos de cocção. Mas o que é pobreza energética e como o Banco Mundial e outras organizações internacionais ajudam a enfrentar essa questão? Temos uma série de definições do tema. A União Europeia, por exemplo, diz que pobreza energética é quando as famílias não conseguem acessar serviços e produtos energéticos essenciais. A Agência Nacional de Energia trouxe esse conceito para quantificar no Brasil que hoje temos 2,4 bilhões de pessoas sem acesso à tecnologia de cocção limpa, cozinhando ainda com lenha e carvão. Como sabemos disso? O Banco

Mundial tem uma base estatística que traz esses indicadores de condições de acesso para entendermos como essas lacunas impactam a vida da população e como podemos desenvolver soluções potenciais para melhorar esse quadro. Essa base de dados é importante porque identifica e analisa as principais razões pelas quais as pessoas não utilizam tecnologias mais limpas. É o preço? É a indisponibilidade? Então, essa base de dados ajuda o governo a aperfeiçoar as suas políticas públicas e as abordagens para alcançar os objetivos desejados.

Qual tecnologia poderia ser usada para combater os efeitos da falta de acesso a combustíveis limpos de cocção?

Em outras áreas de descarbonização, para outros problemas de política pública, precisamos hoje investir em tecnologia porque não temos solução tecnológica adequada. Mas para a redução da pobreza energética, em relação à cocção, o que angustia é que temos tecnologia. O GLP é uma tecnologia conhecida e já utilizada há mais de um século. Temos ainda a alternativa de gerar eletricidade renovável e fazer a cocção com fogão à indução, mas esse tipo de equipamento não faz parte da realidade brasileira, ao contrário de muitos países. Então, ambas as tecnologias (GLP e fogão a gás) já são conhecidas. Temos o problema e a solução tecnológica em escala para resolver isso.

Na sua visão, o que falta para essa solução ser implementada e, assim, mitigar o problema do uso de fontes perigosas para cocção?

Falta aprimorarmos cada vez mais o desenho de políticas públicas que permita esse acesso (ao GLP). Hoje, a pobreza energética é uma realidade. No caso da cocção, no Brasil, 26% do consumo de energia é suprido pela lenha. Não é um consumo lúdico, mas está associado à falta de acesso à energia. Esta, por sua vez, está relacionada à falta de condições de parte da população para comprar o energético. Então, é preciso avançar para tornar esse energético mais acessível para a população brasileira.

O que a Sra. sugere como solução para a redução desse tipo de uso da lenha, que está associado à pobreza energética?

A lenha vinha reduzindo bastante a sua participação (na matriz energética residencial) porque as pessoas tinham acesso a novas tecnologias e a fontes mais limpas. Porém, quando a gente olha os anos de 2021 e 2022, observa-se um aumento no consumo da lenha. Isso está muito relacionado ao cenário macroeconômico do Brasil. Vemos nas residências uma troca bastante rápida do GLP pela lenha. Ou seja, se a pessoa tem dificuldade de renda, não tem dinheiro para comprar o botijão de GLP, ela migra para a lenha. Esse comportamento está fortemente associado a situações de vulnerabilidade econômica. E como a gente faz para resolver? Tem vários países que adotam práticas de subsídio ou de auxílios para combustível; é um mecanismo válido e importante, implantado no mundo todo. Ao mesmo tempo, é necessário trabalhar o aspecto macroeconômico para impulsionar o desenvolvimento econômico do país. E tem outro ponto interessante que é o fato de o botijão em si ser um ativo. A pessoa pode vender o botijão e ter uma renda adicional para comprar comida. Então, apesar de o GLP ser um combustível essencial, ele tem um substituto – poluente, que prejudica a saúde e a qualidade de vida das pessoas, mas é um substituto muito mais barato, que é a lenha.

A redução da pobreza tem relação direta com acesso à energia limpa para cocção e vice-versa. Quais são os caminhos que a Sra. enxerga para trabalhar nessas duas frentes que estão profundamente relacionadas?

Quando a gente olha os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU, todos eles estão interligados. Embora os ODS sejam individualizados, eles se conversam, estão interconectados. Ao falarmos de energia, temos que pensar em fontes que sejam limpas e acessíveis, que são fundamentais para a erradicação da pobreza, para a boa saúde e o bem-estar. Importantes também para garantir educação de qualidade e a igualdade de gênero. A falta de acesso a serviços energéticos retira das pessoas uma série de possibilidades. Há vários estudos que mostram isso. Quando se garante o acesso à energia limpa, há melhora da empregabilidade feminina, aumento da escolaridade. Há vários efeitos positivos. E como trabalhar isso de forma correlata? Precisamos avançar no desenho de políticas públicas que tenham esse olhar de sinergia, de entender o todo. Na EPE, fazemos um planejamento de médio e longo prazo para entender quais são os mecanismos e as ferramentas que precisam ser colocadas em andamento para se ter resultados daqui a cinco, dez, 15 anos.

Quais são as diferenças mais marcantes entre acesso e equidade?

O acesso é ter a disponibilidade do energético. Por exemplo, uma linha de distribuição de energia elétrica passando na sua porta ou a revenda de GLP no seu bairro. A equidade vai além, ela inclui a ideia de que a pessoa consegue ter os meios para, de fato, utilizar aquele energético. Então, equidade energética significa capacidade de fornecer acesso universal, a toda a população, de uma energia que seja confiável, acessível, abundante e limpa.  A equidade vai uma camada além, parte do princípio de que esse acesso é efetivo.

Como a Sra. relaciona um bom programa de combate à pobreza energética com o potencial de transição energética e redução da pegada de carbono?

Os objetivos do desenvolvimento sustentável estão correlacionados. Tem um, por exemplo, que é ação contra a mudança global do clima. Esse é o objetivo que individualizou o combate às mudanças climáticas. Mas sabemos que é inviável atingir esse objetivo sem reduzir a pobreza energética. Por quê? Se temos hoje 2 bilhões de pessoas sem acesso à tecnologia de cocção limpa e quase 1 milhão de pessoas sem acesso à eletricidade, para alcançar níveis de desenvolvimento sustentável, é preciso incluir essas pessoas no mercado, com energias de baixo carbono. No caso da cocção, por exemplo, com o GLP. Se essas pessoas não forem incluídas, não será possível resolver os problemas das emissões associados a essa questão. Tudo está completamente interconectado.

E o GLP pode ser considerado então, em um país como o Brasil, que tem esse energético disponível em todos os municípios, um aliado nesse processo de combate à pobreza energética e até um facilitador para a transição energética?

Certamente o GLP é um aliado importante. De acordo com o IBGE, 98% dos lares brasileiros usam o GLP ou o gás natural como combustível. Só que, por conta da situação de vulnerabilidade, quando a gente analisa os dados de consumo, as residências, em momentos de maior dificuldade econômica, acabam não utilizando o GLP. Temos, então, um espaço grande para políticas públicas. O ministro Alexandre Silveira, por exemplo, falou das políticas que estão sendo desenvolvidas no MME para a universalização da energia, do gás natural e, inclusive, do GLP. Temos trabalhado na EPE justamente nessa questão (ampliar o acesso) do GLP para reduzir emissões de poluentes no consumo residencial, fruto do uso da lenha e do carvão em substituição ao GLP.

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