Fonte: EPBR / Imagem: EPBR 2021

BRASÍLIA e RIO – Os R$ 3,7 bilhões dos contribuintes destinados pelo governo Bolsonaro para desonerar o diesel e o gás liquefeito de petróleo (GLP) de uso doméstico em 2021 poderiam ter bancado de duas a três recargas do gás de cozinha para as mais de 14 milhões de famílias inscritas no Bolsa Família.

Com a popularidade em baixa, Jair Bolsonaro pressionou a equipe econômica pela desoneração de PIS/Cofins dos dois combustíveis, instituída em março – serviu para bancar dois meses de desoneração para o diesel A e o desconto com prazo indefinido para o botijão de 13 kg de GLP.

Os preços do diesel e do GLP continuam subindo e parte dos caminhoneiros segue com ameaças de greve, até o momento contida.

O número de famílias cadastradas no Bolsa Família em junho atingiu 14,7 milhões, maior número no governo Bolsonaro. São pessoas em situação de extrema pobreza, vivendo com renda per capita de até R$ 89 ou R$ 178,00, quando há crianças, adolescentes ou gestantes.

A criação de um novo vale-gás – ou o aumento do Bolsa Família – é prevista desde o governo de Michel Temer, como condição para acabar com o subsídio dado nos governos do PT – e consta em análises da própria equipe de Paulo Guedes.

Foi, contudo, ignorada em 2019, quando a diferenciação de preços do GLP caiu por decisão do Conselho Nacional de Política e Energética (CNPE), colegiado presidido pelo ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e do qual fazem parte outros nove ministérios.

Com a disparada dos preços este ano, estados estão criando seus próprios programas de vale-gás – no Maranhão, de Flávio Dino (PCdoB), e no Ceará, de Camilo Santana (PT), a opção foi pela doação de GLP, que acaba saindo mais barato em chamadas públicas organizadas.

Na Câmara dos Deputados, parlamentares tentam tirar do papel a criação de um novo programa para o gás de cozinha.

Enquanto não se chega a uma solução efetiva, a população que ficou mais pobre recorre à lenha, um indicador de retrocessos em políticas públicas.

A conta da transferência direta

  • A epbr verificou, mês a mês, qual seria o gasto para aquisição de uma recarga de GLP para cada uma das famílias inscritas no Bolsa Família, considerando os preços médios do combustível nas cidades. Veja as premissas no fim do texto
  • Partindo da duração média de dois meses por botijão, utilizada como padrão no mercado, seria possível bancar três recargas para todos os cadastrados no Bolsa Família com os R$ 3,678 bilhões gastos com desoneração.
  • A exceção é o período de fevereiro a junho deste ano, quando seria necessário um adicional de apenas 2% no orçamento do programa (+R$ 76 milhões) para bancar o vale-gás. Considerando a janela de 2020 para cá, o orçamento desse programa hipotético teria sido de R$ 2,85 bilhões a R$ 3,75 bilhões, para uma vigência de seis meses.

No caso de duas recargas (quatro meses de abrangência), o orçamento seria de R$ R$ 1,85 bilhão a R$ 2,60 bilhões.

Desoneração sem efeito para diesel e GLP poderiam bancar vale-gás -- gráfico: preços do GLP e diesel continuam subindo

Da forma como foi feita, a ajuda para compra do gás de cozinha se resumiu a um desconto de R$ 2,18 nos botijões, sem distinção entre ricos e pobres.

“Hoje o governo abre mão de cerca de R$ 1,2 bilhão do PIS/COFINS, mas isso representa no valor final R$ 2,18 de desconto no botijão. Não é absolutamente representativo para ninguém”, afirma Christino Áureo (PP/RJ).

O deputado federal pode ser o relator de um projeto para o GLP-13, que teve sua urgência aprovada na Câmara, antes do recesso. Ele defende a criação do programa Gás Social.

“Talvez tenhamos que tomar uma decisão não tão simplista [ter direcionado as desonerações do diesel e GLP para um vale-gás]. Vale um debate, mas com certeza dá para chegar à conclusão que a redução do imposto não foi algo com cálculo racional, baseado em políticas públicas, e nem mesmo a definição do objetivo é clara”, avalia Paulo Ganime (Novo/RJ).

Ganime, membro da Comissão de Minas e Energia (CME) da Câmara dos Deputados e que foi líder do Novo, faz parte da minoria que ainda defende a agenda econômica liberal na Câmara dos Deputados.

“Teoricamente, sem falar dos valores e do aumento do gás de cozinha, a gente já teria no Bolsa Família uma política pública focalizada para atender a uma população mais carente, para que ela pudesse comprar o gás”, afirma.

O próprio Bolsa Família foi criado a partir da união de diversos programas sociais, incluindo um vale-gás.

O projeto na Câmara é de autoria de Carlos Zarattini (PT/SP). Ele afirma que a estratégia será apresentar uma opção na negociação com o governo federal, mas que, acima de qualquer coisa, é preciso encontrar uma solução para ampliar o acesso ao GLP.

“Eu discordo da política de preços inteira, não tem sentido a paridade internacional para o gás de cozinha. Mas precisamos resolver isso para as famílias de baixa renda”, diz Zarattini.

Entenda a desoneração e por que somamos diesel e GLP

Após uma “queda de braço” de Bolsonaro com a equipe econômica, o governo definiu em fevereiro as desonerações. Decisão tomada no mesmo contexto político de perda de popularidade do presidente – acompanhou a demissão de Roberto Castello Branco, da Petrobras, e a campanha para transferir a responsabilidade para os governadores.

A resistência interna teve vários motivos: o reconhecimento que teria pouco efeito, o impacto na arrecadação e distorções. Minas e Energia alertou que a medida entraria em conflito com o fim da diferenciação, por exemplo.

Tanto no caso do diesel (dois meses), quanto do GLP-13, o gasto com a desoneração não impediu o avanço dos preços.

Com a mesma despesa para o contribuinte (R$ 3,7 bilhões), o governo poderia ter facilitado a compra do gás de cozinha apenas para os mais pobres. A abrangência dependeria do preço e da capacidade de execução da política, mas os efeitos chegariam na ponta de forma mais expressiva.

Para compensar a despesa com a desoneração, o governo elevou a carga tributária dos bancos e tentou acabar com o REIQ, regime tributário que desonera a indústria química. No Congresso Nacional, o regime ganhou sobrevida.

Fim de subsídio ignorou transferência direta

A redução no imposto está valendo desde março, mas foi imperceptível. Tanto os preços do GLP quanto do diesel continuaram subindo no país, por outros fatores.

O desconto no gás de cozinha também beneficia consumidores ricos e pobres, sem distinção – justamente o tipo de política que os economistas dentro do governo Bolsonaro tentam eliminar.

E não há qualquer previsão para criação do vale-gás federal. O tema está no radar do governo e de seus aliados, mas olhando apenas para 2022.

A ampliação do Bolsa Família (ou criação do Renda Brasil) é um trunfo eleitoral na gaveta dos planos do Planalto e de lideranças do centrão, que sustentam o governo Bolsonaro.

O Ministério de Minas e Energia afirmou à epbr, em nota, que assuntos de política social são responsabilidade do Ministério da Cidadania. Este, por sua vez, não respondeu se há algum plano para aquisição de gás focado na população de baixa renda.

Em dezembro de 2018, o então Ministério da Fazenda de Michel Temer, comandado por Eduardo Guardia, alertava que acabar com o subsídio-cruzado nos preços do GLP é uma ação “condicionada à avaliação das medidas de transferência de renda necessárias para mitigar o impacto, nas famílias de baixa renda, da eventual alta do preço do GLP P13”.

O alerta está registrado no livro branco da energia (.pdf), entregue às equipes de Paulo Guedes na transição de governo.

Meses depois, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) revogou a resolução de 2005, da diferenciação de preços, que levava a Petrobras a fornecer GLP para o envase em 13 kg por preços inferiores aos de mercado.

Na época, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, garantiu que o preço ia cair e a ampla adoção da paridade de importação traria mais competitividade ao setor.

“Além disso, a diferenciação diminui a eficiência da política social. O GLP P13 é consumido por famílias de todos os níveis de renda. Logo, a redução do seu preço não beneficia apenas os consumidores de baixa renda, o que significa que a política possui custo maior que o necessário”, registrou o documento.

O diagnóstico é o mesmo da Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria (Secap), de Paulo Guedes.

O fim da diferenciação deveria ser acompanhado da “avaliação de medidas de transferência de renda necessárias para mitigar o impacto, nas famílias de baixa renda, da eventual alta dos preços do GLP P13”, diz uma nota técnica da secretaria.

Os liberais de Guedes vêm tentando, internamente, sanear a economia brasileira dos subsídios, especialmente os cruzados, feitos por meio de encargos, tarifas e preços administrados.

Valeria tanto para o GLP quanto para a reoneração da cesta básica, por exemplo, que também não avançou.

A ideia defendida pelos técnicos é reduzir ineficiências na economia, com benefícios que acabam favorecendo quem vende e sem distinção de quem compra. E no lugar, criar políticas que concentrem os gastos para quem mais precisa.

Desoneração sem efeito para diesel e GLP poderiam bancar vale-gás -- gráfico: preços do GLP nas cidades

GLP da Petrobras subiu 77% desde o fim da diferenciação

A pandemia levou a uma disparada na demanda por GLP para residências em 2020, mas os preços médios nacionais, em geral, subiram, mesmo com o recuo no valor internacional do óleo. A disparada, contudo, veio em 2021, quando os 13 kg de GLP chegam a custar mais de R$ 100 na média de algumas praças.

Com o fim da diferenciação, a Petrobras cobrava R$ 2,0592 por kg de GLP em agosto de 2019 e os preços subiam até o mercado de óleo colapsar em abril de 2020, quando foi a R$ 1,8440 (-10,45%).

A trajetória de preços é ascendente antes e depois da crise e em julho de 2021, o kg do combustível atingiu R$ 3,6531. Desde o fim da diferenciação, os preços subiram, portanto, 77%.

A Petrobras é a única fornecedora do combustível no país, vendido às distribuidoras.

O fim da diferenciação, portanto, se justificaria pela possibilidade de abertura do mercado, eventual aumento da oferta e até mesmo o fim das restrições de uso do GLP, que em geral não pode ser comercializado para uso em motores, caldeiras e aquecedores.

“A fixação ou redução artificial dos preços distorce o sinal de mercado para todos os consumidores, o que amplia o custo de manutenção da política e reduz sua eficiência”, afirma o livro branco.

Para o coordenador técnico do Ineep, Rodrigo Leão, a estrutura do mercado brasileiro inviabiliza as marcações livres de preço – o mercado é fechado, com um supridor majoritário e gargalos na infraestrutura de importação.

O Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (Ineep) foi criado pela Federação Única dos Petroleiros (FUP) em 2018.

“Quando a redução de preços é muito pequena, os elos da cadeia de combustível ‘comem’ essas margens”, diz.

Outra preocupação é a falta de concorrência na distribuição e no varejo.

“Estamos falando de um setor com quase monopólios regionais. Do ponto de vista da formação de preços, não tem muito o que ser feito”, avalia Leão.

Crítico da internalização dos preços dos combustíveis em dólar, o pesquisador propôs em artigo publicado em março a constituição de um fundo e mecanismo de alívio das oscilações internacionais por uma banda de preço.

Exercício similar foi feito pelo Ministério de Minas e Energia (MME) em 2019, quando o mercado sentia os efeitos da recuperação do preço internacional do óleo — essa crise foi “adiada” por outra maior: a pandemia de covid-19.

Entenda a antiga diferenciação dos preços do GLP

  • Durante os governos petistas, o GLP em botijões de 13 kg, voltado para consumidores domésticos, era mais barato em relação às vendas a granel e em outros vasilhames, que atendem a condomínios, comércios e indústrias.
  • O diagnóstico dos governos Temer e Bolsonaro é que a política é ruim, pois usava a Petrobras como o caminho para subsidiar de forma cruzada o gás de cozinha, quanto fechava o mercado e tinha pouco efeito, pelo fato de beneficiar de forma igual pobres e ricos.
  • Em agosto de 2019, a diferenciação caiu. Outras políticas específicas para o setor, contudo, não foram apresentadas.

Premissas

Segundo dados do Ministério da Economia, a isenção de PIS/Cofins em dois meses do diesel e de forma permanente do GLP custarão aos cofres públicos R$ 3,678 bilhões em 2021. E mais de R$ 900 milhões por ano em 2022 e 2023.

O custo do vale-gás foi simulado em nível municipal, com os dados do Ministério da Cidadania (Bolsa Família) e levantamento de preços mensal da ANP – somatório da multiplicação do preço médio e da quantidade de famílias inscritas em cada município, mês a mês.

Quando não há pesquisa de preço na cidade, foi utilizada a média do estado.

De acordo com o Sindigas, que usou informações da PNAD 2019, o botijão de gás dura em média 60 dias com a diminuição do tamanho das famílias. A nossa simulação levou em conta os cenários possíveis de pagamento intercalado (mês sim, mês não) em todas as janelas de janeiro de 2019 a junho de 2021.

Não fizemos projeções futuras de preços.

Ao valor médio do botijão, foi adicionado o valor do PIS/Cofins desonerado para evitar distorções, já que a premissa é que a despesa com isenção poderia ser mais bem utilizada em um programa de transferência direta.

 

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