Por Sergio Bandeira de Mello – Presidente do Sindigás

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Em economias pouco desenvolvidas normalmente observamos uma tolerância maior à informalidade, que acaba por ser vista como uma forma de geração de renda e um estágio melhor que o desemprego. Ainda que seja uma atividade, não se pode perder de vista que dependendo do segmento a informalidade traz uma série de inseguranças, não só para o trabalhador que está à margem do sistema de seguridade social, mas também para o consumidor que adquire seus produtos e serviços. E antes de levantar polêmica se há mais prós ou contras, coloco na berlinda a informalidade no comércio de GLP.

A informalidade nasce, em geral, de forma semelhante para todas as atividades econômicas. Fomentada por uma crise econômica, pela necessidade de expandir sem aumentar custos e por aí vai. Afinal, de onde surgem tantos vendedores de guarda-chuvas em dia de chuva? E não é um fenômeno só latino-americano, mas presenciei este fato também em Florença, na Europa, portanto, arrisco dizer que é um fenômeno mundial. É inegável que para o consumidor essa é uma conveniência fantástica. Não é preciso sair em busca de um guarda-chuva pelas lojas, basta olhar ao redor e lá estão os vendedores com o “objeto de desejo”.

Não defendo os informais, que somente correm aos depósitos atacadistas para obter em consignação as peças e depois correm para as ruas em busca de compradores, em detrimento dos formais, que estocam, pagam aluguéis em ruas caras e ocupam prateleiras para um produto de oportunidade. A concorrência é desleal, mas, do ponto de vista do consumidor final, parece ser a solução do século. Mas vou novamente escapar deste debate.

O fato é que a informalidade vai aos espectros mais variados das atividades econômicas. Podemos comprar desde capas para celular, quando não  os próprios celulares (sendo por vezes fruto de roubo), à transporte urbano, refrigerantes, roupas, e outras mil coisas. Bastam 15 minutos de engarrafamento e temos centenas de rapazes vendendo água, bala, biscoitos. E esses produtos não surgem do nada, há sempre um comerciante legalizado por trás. Aquele que aposta na informalidade como canal de vendas, terceirizando sua carteira de clientes e alargando o alcance de sua rede de atendimento por territórios antes inatingíveis e nos quais os custos operacionais seriam impossíveis de sustentar em um sistema de trabalho formal.

Não creio que as autoridades públicas compactuem com a venda de produtos comestíveis, por exemplo, e menos ainda com produtos “inflamáveis”, como é o caso do Gás Liquefeito de Petróleo. Mas a verdade é que encontramos uma oferta importante de GLP em pontos informais, sejam em “clandestinos fixos”, como açougues, farmácias, padarias e mercadinhos, quanto em “clandestinos móveis”, agentes informais que adquirem dos formais, como os vendedores ambulantes de guarda-chuva, que saem ocupando um espaço que seria custoso demais para o formal preencher. O informal não ocupa um espaço preenchido, mas uma lacuna por mais conveniência, rapidez e proximidade, com custo agressivamente baixo, o que nem sempre se reflete no preço. No fundo, ele sabe que oferece o biscoito, o guarda-chuva ou o GLP em condições especiais, precificando esta condição. Não pensemos que são tolos, por favor! Eles não estão sujeitos às normas trabalhistas, fiscais, de segurança, de transporte, de garantia e assistência etc., mas seguem as leis de mercado, para o bem e para o mal.

Ao olhar para o informal, tendemos a pensar: “coitado, deixem ele, pelo menos não está roubando”.  Mas não é bem assim. Não sabemos a origem do produto, não temos documentos fiscais para rastrear as responsabilidades, seja qual for o produto. E, por fim, o informal sonega uma série de impostos que recairão, inequivocamente, sobre a sociedade formal. Mas voltemos ao caso do GLP envasado. Este produto é um combustível inflamável, vendido e transportado em vaso de pressão, estando submetido a uma série de regras de transporte, armazenamento, comercialização, e uma infindável cadeia de cobrança de impostos, exigindo profissional treinado para o seu comércio e instalação. Assim, podemos olhar com a mesma piedade o informal ou o comerciante formal que fomenta este canal de vendas?

O bom senso responde: nem pensar. Cabe neste caso encarar o comércio informal como um risco à sociedade, um crime contra a ordem econômica. Não podemos proteger empresários que gozam da concessão ou autorização para comercializar o produto e atuam também informalmente. Devemos sim resguardar o consumidor final, a sociedade em geral e, em especial, os vizinhos de locais onde este informal armazena GLP de maneira irregular. Entocado, escondido, em condições de segurança inaceitáveis. O cilindro de GLP é seguro, tão seguro que usamos próximo a um fogão aceso, mas deixá-lo, durante o seu uso, ou armazená-lo em local sem ventilação gera enorme risco à sociedade e à vizinhança.

No Brasil, temos uma experiência que precisa ser observada de perto. A Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) lançou em 2003 uma resolução sobre critérios para um comerciante caracterizar-se como revendedor de GLP. Regras simples foram exigidas, mas havia um número ínfimo de comerciantes que se engajava ou se submetia a estas regras, alguns por ignorarem, outros por acreditarem que gerariam mais custos ao migrarem para a formalidade. A informalidade mantinha-se como um desafio aos que investiam nas normas e sentiam-se tolos, pois faziam tudo certo, enquanto aqueles que agiam à margem da lei apropriavam-se da cadeia de clientes e das melhores margens comerciais.

O sentimento de frustração ganhou grande proporção e o setor privado pediu ao poder público que atuasse de maneira forte e educativa sobre estes atores informais. Isso levou tempo, muito tempo. Os formais quase foram ao limite da loucura, mas a revenda e a distribuição de GLP no Brasil não cruzaram os braços, partiram para a busca de mercados onde havia organismos de Estado dispostos a ajudar na repressão “educativa” dos informais na venda de GLP envasado. Uma série de campanhas foi lançada para divulgar as diferenças entre a revenda formal e informal. O sucesso foi tão grande que, em 2010, a ANP lançou o maior programa de combate à informalidade que temos notícia, o Programa Nacional pela Erradicação do Comércio Irregular de GLP, mais conhecido como Programa Gás Legal. A iniciativa foi além do informal, buscando punir toda e qualquer irregularidade no comércio de GLP.

São muitos os méritos do Programa, mas indiscutivelmente o principal foi o entendimento de que o problema estava além dos limites da ANP. Organismos municipais e estaduais, entidades de defesa dos consumidores e corporações de bombeiros faziam parte do mesmo programa. A criação de uma aliança envolvendo os meios de comunicação em uma ação educacional chegou às escolas das comunidades carentes, passando por cartilhas e livros com disseminação das normas, levando o conhecimento à toda sociedade. Agentes informais, em grande parte, migraram para a formalidade. Os números da ANP confirmam esse cenário que se concretizou a partir dessa iniciativa. O quadro evolutivo do número de revendas formais ao longo dos anos mostra isso:

Dados estatísticos sobre as revendas de GLP autorizadas pela ANP no período de 2004 a 2016

ANO 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Nº de revendas 880 2200 4079 7366 5969 5392 8394 7275 5677 4958 3831 4191 4862
Acumulado 880 3080 7159 14525 20494 25886 34280 41555 47232 52190 56021 60212 65074

 

É importante não menosprezar a necessidade de repressão pois a impunidade faz com que os informais persistam e proliferem. No entanto, pelo caráter educativo das ações repressivas, quando são realizadas em baixo volume mas com intensa frequência, poderíamos garantir maior eficácia nos resultados. Somos fãs incondicionais do Programa Gás Legal, antes e depois do comando da ANP, porque sempre contamos com a participação de organismos públicos que entenderam a informalidade como algo além de um inofensivo guarda-chuva. Sabiam que tratava-se do comércio de gás envasado em cilindros sob pressão, e com isto não se brinca.

Como nada é perfeito, sofremos um arrefecimento no programa e as autoridades afastaram-se em várias praças das ações repressivas, logo retornou uma nova modalidade de informal, o informal móvel, que aparece e desaparece. Esse já não vende gás no açougue, mercadinho ou farmácia, mas sim em veículos que cruzam as ruas de maneira irregular, sem documentos fiscais, sem cumprimento de normas de segurança, sem oferecer assistência técnica ou garantias e, ao menos contando com técnicos capacitados, “armazenando” indevidamente o gás em seus veículos, em suas casas ou garagens sem mínima ventilação. Esta será a nova fase, que será retomada pela ANP e pelos agentes privados.

Buscaremos combater não somente os informais, alvos das repressões, mas também aqueles que os abastecem, sabendo de suas atividades ilícitas. Os guarda-chuvas de Florença, a que me referi no começo do artigo, não estão armazenados nas catacumbas e canais dos livros de Dan Brown. Não obstante há motivos para otimismo, os resultados obtidos mostram que estamos corretos, e que o consumidor é o grande vitorioso deste processo, que não pode, sob hipótese alguma, banalizar o comércio informal de combustíveis.                                                                                          

 

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